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Comentário – A tributação na transmissão hereditária de bens situados no exterior
09/09/2015

O Supremo Tribunal Federal (“STF”) reconheceu recentemente a repercussão geral de uma matéria que interessa a muitos contribuintes: a tributação da transmissão hereditária de bens situados no exterior. No caso, discute-se a incidência de Imposto de Transmissão Causa Mortis (“ITCMD”) sobre a doação testamentária de um imóvel localizado em Treviso, na Itália, bem como a transferência de uma quantia em euro, a um herdeiro brasileiro. O Tribunal de Justiça de São Paulo reconheceu o direito do contribuinte de não ser compelido a recolher o tributo. A Fazenda do Estado de São Paulo interpôs, então, o Recurso Extraordinário em questão.


Após quase cinco anos da transmissão dos bens, o Fisco paulista notificou o contribuinte para proceder ao recolhimento do ITCMD, acrescido de multa e juros, utilizando como base legal para a cobrança do imposto uma lei estadual, editada no intuito de suprir a omissão do Congresso Nacional em disciplinar a matéria.


Uma das discussões travadas no referido processo é a possibilidade de o legislador estadual suprir a lacuna legislativa, quando a Constituição Federal exige que a tributação da transmissão hereditária de bens situados no exterior seja regulada lei complementar federal. Há bastante divergência quanto à possibilidade de os Estados-membros, diante da omissão do legislador federal, exercerem a competência para editar diplomas normativos sobre a matéria.  Com o reconhecimento da repercussão geral, o STF padronizará a interpretação constitucional, trazendo maior segurança a respeito desse assunto.


Outro enfoque que merece atenção e será analisado a seguir é a possibilidade de bitributação na transmissão hereditária de bens situados no exterior, partindo do pressuposto de que, mesmo sem a edição de lei complementar, as legislações estaduais estariam aptas a definir os critérios de incidência do ITCMD.


A Constituição Federal, em seu art. 155, § 1º, I e II, prevê que o ITCMD, (i) relativamente a bens imóveis e respectivos direitos, compete ao Estado da situação do bem, ou ao Distrito Federal e, (ii) relativamente a bens móveis, títulos e créditos, ao Estado onde se processar o inventário ou o arrolamento, ou tiver domicílio o doador, ou o Distrito Federal, de igual sorte.


Em se tratando de impostos sobre as transmissões sucessórias, o Estado pode adotar dois princípios para invocar o poder de tributar as sucessões: do domicílio das partes (universalidade) ou da situação dos bens (territorialidade). Ao adotar o primeiro, o Estado poderá tributar, em sua totalidade, as transmissões patrimoniais efetuadas por residentes ou em favor de beneficiários residentes, independente de onde seja a localização dos bens ou direitos objetos da transmissão. Tem-se aqui a ideia de universalidade, visto que a legislação abrange a totalidade dos bens e direitos, inclusive os situados no exterior.


De acordo com o princípio da situação do bem, o Estado deve tributar exclusivamente as transmissões inerentes a bens e direitos localizados em seu território, sem considerar o domicílio do transmitente ou beneficiário, mesmo que as partes envolvidas na relação tributária residam em outra Unidade federativa ou no exterior.


A legislação brasileira adotou um critério misto na sua tributação. No caso de bens imóveis ou direitos a eles inerentes, a Constituição Federal adotou o princípio da territorialidade, competindo o imposto ao Estado da situação do bem, ou ao Distrito Federal, mesmo que o sucessor ou sucedido residam em outros Estados ou no exterior.


No caso de bens móveis, títulos e créditos, a Carta Magna adotou o critério da universalidade a partir do domicílio do autor da herança (local do processamento do inventário) para fixar a competência tributária do Estado e do Distrito Federal. Por sua vez, quando a pessoa sucedida for residente ou domiciliada no exterior, surge exatamente a lacuna normativa que deveria ser tratada pela lei complementar federal e que é, como já afirmado acima, objeto de julgamento do Supremo Tribunal Federal.


Uma vez adotado o critério do domicílio ou residência, como acontece na legislação pátria, toda a renda e bens dos residentes no território do Estado é tributada, independente da nacionalidade das pessoas, da origem das suas rendas ou da nacionalidade de seus bens.


Cumpre esclarecer que a qualificação de residente deve ser atribuída ao ordenamento interno de cada Estado. Para evitar a bitributação, o Direito Internacional adota a definição de residência utilizada nas convenções bilaterais, que, por sua vez, se baseiam no conceito do Modelo de Convenção para evitar a dupla tributação, instituído pela OCDE.


Esse modelo é utilizado pela maioria dos Estados, incluindo o Brasil, e define o residente como qualquer pessoa que, em virtude da legislação, está sujeita ao imposto nesse Estado, devido ao seu domicílio, à sua residência, à sua sede de direção ou a qualquer outro critério de natureza análoga.


O modelo da OCDE prevê ainda vários critérios para solucionar a pluralidade de residências das pessoas físicas: habitação permanente, centro de interesses vitais, permanência habitual, nacionalidade. Caso nenhum deles satisfaça, a qualificação será tomada de comum acordo entre os Estados contratantes.


Considerando a complexidade dos sistemas tributários, bem como o fato de a generalidade dos Estados, de acordo com suas conveniências internas, poder fazer prevalecer um ou outro princípio ou critério de conexão (ou mesmo ambos, simultaneamente), pode ocorrer a dupla tributação na transmissão de riquezas.


A bitributação internacional ocorre quando dois países diferentes tributam um mesmo fato, referente à mesma riqueza e à mesma pessoa. É dizer, quando se exige o recolhimento de um tributo em razão de um mesmo fato econômico relativo a um mesmo contribuinte, levando os dois Estados a exigir impostos similares, gerando uma distorção na tributação e um tratamento danoso ao contribuinte.


No campo da tributação sucessória, se uma pessoa física detém patrimônio em mais de um país, é grande a chance de que o país onde ocorra o inventário tribute todo o patrimônio global do sucedido (universalidade) e que o país do local dos bens (territorialidade) também venha a tributar aqueles bens que nele se localizem, gerando a dupla tributação.


Os diversos países utilizam alguns mecanismos em sua legislação para evitar o fenômeno da dupla tributação no campo dos impostos sucessórios. Uma forma de dirimi-la seria a concessão de créditos de impostos pagos a este título no exterior, ou conceder-se a isenção quanto à sucessão dos bens situados no exterior, em se tratando de sucedido ou sucessor tributados internamente. No entanto, não há qualquer previsão neste sentido na legislação brasileira.


Apesar de serem as convenções para eliminar a dupla tributação mais frequentes em matéria de tributação da renda e do lucro, também a tributação sucessória é objeto de celebração de convenções para evitar a cobrança de impostos sobre a mesma sucessão hereditária, por dois países distintos, sendo esta outra forma de reduzir a sua ocorrência, como atestam acordos celebrados entre diversos países (a exemplo das Convenções pactuadas entre França e Suécia, Alemanha e Itália, França e Alemanha). No entanto, o Brasil não é signatário de nenhum tratado que disponha sobre essas medidas, o que seria recomendável, ao menos em relação àqueles países com que o Brasil compartilha um maior fluxo de riquezas, de forma a reduzir, ou mesmo eliminar a dupla tributação incidente.


Por fim, ressalte-se a esse respeito que a possibilidade de bitributação reforça a necessidade de planejamento sucessório quanto a patrimônios localizados no exterior, de forma a avaliar o risco e o impacto de sua ocorrência e estruturar o patrimônio de forma a que não venha a ocorrer a dupla oneração, evitando que o contribuinte seja surpreendido e cobrado duas vezes pelo mesmo fato gerador.

Quadro - resumo: tributação na transmissão hereditária de bens situados no exterior

 

Previsão constitucional do ITCMD

Art. 155, § 1º, I e II

§ 1º O imposto previsto no inciso I [sobre transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos]:

I - relativamente a bens imóveis e respectivos direitos, compete ao Estado da situação do bem, ou ao Distrito Federal

II - relativamente a bens móveis, títulos e créditos, compete ao Estado onde se processar o inventário ou arrolamento, ou tiver domicílio o doador, ou ao Distrito Federal;

 

Sugestões para dirimir a possibilidade de bitributação

Medidas que podem ser adotadas pelo Brasil

Concessão de créditos de impostos pagos em doação no exterior, ou isenção, em se tratando de doador ou donatário tributado no Brasil.

Celebração de acordos ou tratados que disponham sobre medidas para evitar ou eliminar a dupla tributação incidente sobre a transmissão do patrimônio