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BRASIL, OMC E LEI DO BEM
03/01/2017

Aristóteles Moreira Filho¹

A recente decisão da OMC, de, a partir de controvérsia suscitada pela União Europeia e pelo Japão, condenar uma série de instrumentos chaves da política industrial brasileira, ainda que esperada, foi recebida com grande apreensão pelo establishment econômico nacional, cujos investimentos foram alavancados nos últimos anos a partir da plataforma proporcionada por estes programas. Regimes como Recap, Lei de Informática, INOVAR-AUTO, PATVD e PADIS foram considerados subsídios incompatíveis com as regras do sistema GATT/OMC. Detalhes da decisão ainda são desconhecidos, mas o seu resultado permite-nos extrair algumas conclusões e rumos possíveis para a estratégia brasileira de política comercial e industrial. E todas elas partem do imperativo de que o Brasil se mantenha senhor e protagonista de sua política industrial, no exercício de sua soberania econômica e rumo ao necessário desenvolvimento.

O primeiro ponto de atenção é uma velha novidade, cujos efeitos deletérios se renovam, tal qual a zika, de verão a verão. O sistema de tributos indiretos brasileiro, formado por ISS, ICMS, IPI, PIS e Cofins, já se mostrou incompatível com a economia globalizada e é um obstáculo concreto à inserção do país no mercado internacional. A grave cumulatividade destes tributos já tornava o país um dos poucos exportadores de impostos do mundo e retira qualquer competitividade do produto nacional num mercado global disputado palmo a palmo. Agora ameaça inviabilizar as políticas comercial e industrial brasileira no âmbito internacional. Aquilo que sob um regime típico de tributação sobre valor agregado é endereçado pela simples isenção e manutenção do crédito na operação de exportação (border tax adjustment – “BTA”), no Brasil se faz necessário recorrer a incentivos fiscais: regimes como o Recap e o Reintegra, ao pretenderem compensar o exportador pela cumulatividade dos nossos tributos “não-cumulativos”, escancaram as deficiências do sistema tributário brasileiro e expõem desnecessariamente o país às regras internacionais anti-subsídios.

A condenação pela OMC indica que a forma de concessão de incentivos à indústria nacional através de créditos de tributos indiretos está no radar da entidade multilateral como um instrumento que efetivamente distorce a livre competição no mercado internacional. Os créditos de tributos indiretos vinculados a operações de exportação poderiam ser considerados subsídios à exportação, que são proibidos sob o Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias (“ASMC”) e não poderiam substituir os BTAs típicos do IVA, esses sim permitidos sob as regras do comercio internacional. Por sua vez, mesmo para regimes de incentivo que não são vinculados a exportação de produtos nacionais ou importação de produtos estrangeiros, mas sim a projetos de investimento, pesquisa e desenvolvimento, a sua concessão através da redução de tributos indiretos impactaria diretamente o preço dos produtos e teria potencial claro de distorcer a competição em prejuízo do concorrente estrangeiro, o que, especialmente quando concedido a determinados setores da economia, poderiam ser considerados subsídios acionáveis sob o ASMC.

É nesse contexto que puxamos o foco para a Lei do Bem, que concede, em seu art. 19, benefício fiscal acoplado a inputs de inovação sob a forma de dedução adicional de 60% na apuração do IRPJ e da CSLL. Os típicos incentivos à geração de inovação (incentivos de input) não apenas são, à luz da literatura econômica, muito mais eficientes e justificados em comparação com políticas de subsídio à exportação e de conteúdo nacional: operando através de tributos diretos e vinculados a etapas prévias à produção e à chegada dos produtos no mercado, eles não impactam diretamente o preço dos produtos e tendem a escapar do farol vermelho (subsídios à exportação e à importação) e igualmente do farol amarelo (subsídios específicos com efeitos danosos) da OMC. Não se quer dizer que subsídios a P&D, concedidos via tributos diretos, não apresentem riscos perante a OMC, sensível especialmente aos incentivos concedidos a determinado setor ou região (específicos). Incentivos a P&D que sejam concedidos de forma transversal, como a Lei do Bem, contudo, bem como aqueles voltados a determinadas tecnologias, ao invés de grupos de empresas, apresentam elevado grau de compliance perante a OMC e apontam um caminho consistente para a política industrial brasileira, inclusive aquela setorial. O case law da OMC, com raríssimos casos de questionamento de incentivos a P&D, demonstra que tais mecanismos, a não ser que destinados a produtos market-ready e com alto potencial de exportação, não são considerados distorcivos das condições de concorrência nos termos das normas de comércio internacional.

Decerto que, com a recente profusão de regimes de incentivo a inovação mundo afora, de input como de output, a tendência é que a OMC aumente o rigor com que analisa estes instrumentos. De toda forma, o modelo de incentivos a inovação através da redução de impostos diretos vinculados a atividade de P&D não apenas tem o potencial de induzir a geração de tecnologia e o desenvolvimento da economia, mas também de incrementar o grau de compliance da política industrial brasileira com os marcos normativos do comércio internacional; encontrando eco ainda, tanto na forma como nos objetivos, na prática internacional dos países. É fundamental otimizar a implementação deste mecanismo na realidade brasileira, tanto pela reforma da Lei do Bem, há muito necessária, como pela sua aplicação aos setores estratégicos da economia brasileira. Se a decisão da OMC, condenando os subsídios brasileiros, vier para provocar a evolução da política industrial brasileira, neste nível, terá vindo para o bem.

¹Mestre em direito tributário pela PUC-SP. LL.M. em tributação internacional pela Ludwig-Maximilians Universität München. Doutorando em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela USP. Pesquisador do Centro de Estudo Sociedade e Tecnologia (CEST), da Poli-USP. Pesquisador visitante no Max Planck Institute for Tax Law and Public Finance, Munique, Alemanha.
Fonte: Artigo publicado no jornal Valor Econômico do dia 18/01/2017