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Confissão irretratável em parcelamentos
22/08/2014

Os já recorrentes programas de anistia e parcelamento de débitos fiscais instituídos de tempos em tempos pelo governo, com relevantes reduções nos valores de multas e juros, quase sempre condicionam a adesão à confissão irrevogável e irretratável dos respectivos débitos pelo sujeito passivo, com desistência de quaisquer discussões em curso sobre a exigência e renúncia a todas as alegações de direito sobre as quais se fundam.

 

Ocorre que a confissão de dívida feita pelo contribuinte, em caráter irretratável e irrevogável, como condição de adesão a anistias e parcelamentos fiscais, não impede a posterior discussão judicial da exação caso ela venha a ser declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

 

Isso porque a obrigação tributária decorre exclusivamente de lei, como dispõem o artigo 150, I da Constituição Federal (CF) e o artigo 3º do Código Tributário Nacional (CTN).

 

Impedir o questionamento judicial da obrigação violaria também a garantia constitucional de tutela jurisdicional de lesão ou ameaça a direito, prevista no artigo 5º, XXXV da CF ("a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito").

 

É nesse sentido o posicionamento pacífico do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e dos Tribunais Regionais Federais (TRFs) sobre o tema.

 

De acordo com a jurisprudência atual desses tribunais superiores, a irretratabilidade da confissão de dívida para fins de adesão a parcelamentos fiscais é relativa, ficando restrita somente a questões fáticas, mas não de direito. Ou seja, ao aderir a um parcelamento de forma irrevogável e irretratável, o contribuinte abriria mão de discutir tão somente os fatos relacionados à respectiva exigência fiscal, porém não o direito a que se relaciona, como no caso de a exação vir a ser declarada inconstitucional.

 

Mesmo a matéria de fato poderia ser questionada e revista diante da existência de algum vício que cause a nulidade do ato jurídico (i.e., erro, dolo, simulação ou fraude).

 

Alguns dos julgados igualmente afirmam que a obrigação tributária só pode nascer de lei, nunca da declaração de vontade do sujeito passivo. Por essa razão, uma vez declarada a inconstitucionalidade da norma que criou a exação, não poderia subsistir a obrigação relativa ao seu parcelamento ou anistia, já que a mera declaração do contribuinte de que deve o tributo, sem o seu fundamento de validade, não é capaz de instituí-lo nem de torná-lo válido ou devido.

 

Há inclusive decisões que, além de relativizarem a irretratabilidade da adesão ao parcelamento nessas hipóteses, reconheceram também o direito do contribuinte à restituição ou compensação dos valores já recolhidos.

 

Recurso especial julgado em 2010 pela 1ª Seção do STJ é representativo da jurisprudência dominante dessa Corte sobre o tema, havendo também outros julgados do STJ e dos TRFs da 1ª, 2ª, 3ª, 4ª e 5ª Regiões aplicando o mesmo entendimento.

 

Passemos a um exemplo: débitos fiscais decorrentes da aplicação de índice de correção monetária diverso do determinado pelo Plano Verão para fins de correção monetária das demonstrações financeiras no ano-base de 1989. No fim de 2013, o índice instituído pelos artigos 30, parágrafo 1º da Lei nº 7.730, de 1989, e 30 da Lei nº 7.799, de 1989, foi declarado inconstitucional pelo Tribunal Pleno do STF, sob o regime de repercussão geral, numa brutal guinada jurisprudencial.

 

À vista desta decisão do STF e da atual jurisprudência dos tribunais superiores relativizando a irretratabilidade da adesão a parcelamentos, poderá o contribuinte suspender os pagamentos devidos em função de eventual parcelamento, e requerer a restituição ou compensação dos valores já recolhidos em razão do Plano Verão.

 

Como regra, as decisões sobre a inconstitucionalidade de normas pelo STF têm efeitos retroativos à data de edição da norma declarada inconstitucional, como se ela jamais tivesse existido. Porém os efeitos da decisão podem vir a ser modulados (restritos) pela Corte por razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, para que ela só tenha eficácia a partir do momento em que se torne irrecorrível ou de outro momento fixado pelo STF. Tal modulação pode prejudicar, em todo ou em parte, a restituição ou compensação de valores já pagos sob a anistia ou parcelamento.

 

Ressalte-se que a possibilidade de questionar o débito nos casos acima comentados não significa que as exigências de confissão e renúncia em caráter irretratável e irrevogável sejam, por si, inconstitucionais. O Código Tributário Nacional (CTN) admite a fixação por lei de condições de adesão a parcelamentos. Por isso, tais condições não representam, em principio, ofensa ao princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional.

 

Todavia, sempre que os valores pagos sob anistia ou parcelamento forem declarados indevidos pelo STF, o sujeito passivo terá o direito de suspender os pagamentos e recuperar os valores já pagos, observada eventual modulação dos efeitos da decisão.

 

Isabela Schenberg Frascino é sócia de Levy & Salomão Advogados e mestre pela Universidade de Harvard

Fonte: Valor Econômico, por Isabela Schenberg Frascino